“A loucura entre nós”, filme dirigido por Fernanda Fontes Vareille, lança um olhar sobre os corredores e grades de um hospital psiquiátrico, buscando personagens e histórias que revelem as fronteiras do que é considerado loucura. Através, principalmente, de personagens femininas, o documentário exala as contradições da razão, nos fazendo refletir sobre nossos próprios conflitos, desejos e erros. Livremente inspirado no livro homônimo do médico psiquiatra Marcelo Veras, o filme faz um sensível mergulho nos paradoxos da reinserção da loucura no mundo em geral, subvertendo qualquer tentativa de reduzir as personagens retratadas a marionetes de questões envolvendo a sanidade mental. Fernanda Fontes Mora nasceu em Salvador e atualmente mora em Paris e realizou o mestrado em cinema na Sorbonne. Seu filme estreou no dia 16 de junho e teve a sala lotada, a crítica o recebeu muito bem. O Vozes da Voz entrevistou a cineasta sobre como foram as etapas de realização do filme.
V – Qual foi sua motivação ou inspiração de realizar esse filme?
F – A ideia surgiu a partir de uma conversa com Dr. Marcelo Veras, meu amigo, que me deu um exemplar do seu livro e me falou sobre o Criamundo. Ele foi diretor do Hospital Juliano Moreira e me contou um pouco da sua experiência.
Tudo começou em 2011. Vi que eu tinha uma oportunidade única diante de mim: aprender a conhecer personagens únicas. A filmagem começou em 2011; o filme foi finalizado em março de 2015. Contamos com o patrocínio cultural de duas empresas: a Petrobahia e a Carbocloro (através do artigo 1° A da Lei 8685/93, Lei do Audiovisual) que foram fundamentais para que o filme pudesse ser realizado. São empresas que reconhecem o investimento na cultura e que acreditaram no nosso projeto e na importância de se fazer um filme sobre essa temática. O resultado é um filme de 78 min, o meu primeiro longa metragem. Anteriormente havia realizado três curtas, dois de documentário e um de ficção.
V – Quanto tempo durou a produção do filme?
F – 4 anos
V – Qual foi o maior obstáculo de produção do filme?
F – Enfrentamos muitas dificuldades. Da captação de recursos à nossa adaptação ao hospital, nada foi fácil.
V – O que mais te surpreendeu durante as filmagens?
F- As surpresas no momento da produção, principalmente no primeiro mês, eram constantes. Chegamos a colocar uma Go Pro (câmera) dentro do carro para filmarmos as nossas conversas após o dia de filmagem. Não utilizei esse material, pois seria outro filme… Dentre as surpresas posso destacar o dia em que presenciamos o surto de Leonor, uma das personagens abordadas. Esse momento foi revelador e, de certa forma, influenciou na direção do filme. Até então ela assumia uma postura discreta e reservada. Ela nos concedia entrevistas, mas sempre fugia das questões muito pessoais. Nas entrevistas, ela falava genericamente sobre a vida, sobre questões abstratas. A equipe se questionava sobre a real loucura dela. Por isso mesmo, acreditava que ela poderia ser uma personagem interessante no filme, pois se enquadrava como louca, estava frequentando a Criamundo, mas fugia dos estereótipos do que consideramos louco.
Um determinado dia, vi Leonor em surto. Acho que foi uma realidade que veio à tona. Nos dias anteriores, acho que esse surto se anunciava, mas como não tínhamos experiência e conhecimento para identificar, achamos que ela estava mais aberta, alegre, mas não esperávamos o que iria acontecer. O que nos restava da nossa visão romantizada da loucura foi embora. A realidade passou a ser mais dura do que imaginávamos. Nesse mesmo dia ela nos revelou tudo que tentava esconder durante meses e despe-se completamente para as câmeras revelando, neste momento, tudo aquilo que parecia um tabu. Perdemos a ingenuidade.
V- Qual a mensagem maior que você pretende com o filme “ A loucura entre nós”?
F – Acredito que o documentário contribui para a desestigmatização da loucura. Buscamos ter acesso à subjetividade dos nossos entrevistados, através da palavra, do contar as suas historias. Procuramos acessar o universo daquelas pessoas que seriam entrevistadas. Esse foi o meu primeiro longa, quatro anos se passaram do momento em que eu decidi filmar até o filme pronto. Acompanhei e estive envolvida em todos os momentos. Desde da elaboração do projeto, captação de recursos até a distribuição. Aprendi muita coisa com esse filme, com as pessoas que tive oportunidade de trabalhar. Mas o mais agregador foi esse processo de auto descoberta imposto ao fazer um filme sobre essa temática. Posso dizer que a confecção desse filme e os encontros que tive através dele foi um divisor de águas na minha vida. Foi um processo desafiador e perturbador.
No inicio eu havia uma visão ingênua sobre a loucura que foi se transformando durante o processo. Entrar em um hospital, conhecer aquele mundo, conhecer aquelas pessoas, tanto os pacientes como os funcionários, é um eterno questionamento. Você é obrigada a se colocar em questão a todo o tempo. Sempre me perguntava: Por que tal pessoa me interessa? O que ela tem que me faz despertar curiosidade por ela? Por que a entrevista com fulano me incomodou? Essas são apenas algumas. Era uma enxurrada de perguntas e questões que vinham à tona que me faziam rever os meus próprios fantasmas e questões, conceitos… Acho que os outros integrantes da equipe passaram por processos similares.
V – Alguma experiência pessoal em relação ao tema do filme?
F – Eu nunca havia entrado em um hospital psiquiátrico anteriormente. O contato que havia tido com o universo do filme, ou seja, a loucura, vinha dos meus próprios questionamentos sobre a minha sanidade e observação de pessoas ao meu redor.